"Os pobres sempre os tendes convosco"?
Você está tomando um café gostoso numa confeitaria aprazível. Nem vê entrar a menina de pés descalços e olhos tristes... Ela bate de leve no seu ombro e estende a mão. Encabulado, você disfarça. “Como é que deixaram ela entrar aqui?”, pensa, sorrindo amarelo. Você não sabe o que fazer. Rápido, põe um trocado na mão da garota, desejando muito que ela vá logo embora, em busca de outro ombro...
Entrementes vários outros ombros foram tocados, umas poucas moedas tilintam na mão da menina e você volta a mergulhar no seu mundo, ainda que o café já não tenha o mesmo sabor. Jesus sabia que a coisa seria assim — você e eu pensamos — e foi por isso que ele disse: “Os pobres sempre os tendes convosco” (Mc 14.7).
Poucas palavras bíblicas têm sido tão mal evocadas e com tanta freqüência. Diante da realidade da pobreza avassaladora que nos cerca, acabamos justificando o quadro, quando não a nossa própria indiferença.
Nesse versículo Jesus diz não apenas que os pobres sempre estarão conosco, mas acrescenta: “Quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem” (Mc 14.7). Não é preciso contrapor um trecho ao outro, nem se pode “usar” esta palavra de Jesus para justificar a pobreza nem a injustiça que a gera. Esta afirmação de Jesus não é uma profecia, mas uma constatação da realidade que marca nossa história há muito tempo. É como aquela que diz do divórcio: é pela “dureza do vosso coração” que ele existe. É por causa dessa dureza que os pobres estão sempre conosco. Por mais tempo do que o necessário, em mais lugares que o desejável e em número maior do que o admissível. Como Jesus gostaria que disséssemos: “Olha, Mestre, já não há mais menina descalça entre nós!” Ele iria sorrir e com o olhar dizer: “Já não era sem tempo!”
Um dos princípios hermenêuticos vindos da Reforma é que se deve interpretar a Bíblia pela Bíblia. Nesse sentido, a Bíblia fala claramente da relação entre o pecado da exploração e da opressão e a existência do pobre e da pobreza. A injustiça, além de denunciada, deve ser ultrapassada pela justiça, com a qual Deus está visceralmente comprometido; e nisso ele quer ver o seu povo engajado de maneira singular e prioritária.
Um dos textos mais belos e profundos de como isso deveria e poderia acontecer é o da experiência da igreja primitiva, quando uma comunidade emergente praticava o suprimento das necessidades básicas da vida e onde as meninas tinham chinelos para calçar (At 2.42-47). Assim, eles oravam, comiam e cantavam juntos, como Deus gosta.
Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, dos quais começamos a tratar na edição anterior (maio/junho de 2007), estabelecem como primeiro objetivo “acabar com a fome e a miséria” no mundo. A fome e a miséria aqui identificadas são as extremas, quando as necessidades básicas da vida — comida, água, vestuário, abrigo, saneamento, educação e saúde — não podem ser atendidas. Em termos do Banco Mundial, isso acontece quando se vive com menos de 1 dólar por dia, o que ocorre hoje com 1,1 bilhão de pessoas. Em conseqüência, a cada três segundos morre uma criança no mundo vítima de aids e pobreza extrema.
Esse objetivo propõe reduzir pela metade até 2015 o número de pessoas que vivem assim, bem como reduzir pela metade a proporção de pessoas que sofrem fome e aumentar a quantidade de comida para aqueles que sofrem fome extrema.
Estamos em 2007 e acabou-se o primeiro tempo desse jogo pela vida. Em alguns lugares do mundo, entre os quais o Brasil, o progresso tem sido significativo. Já em outros, especialmente no continente africano, o alcance do objetivo deixa muito a desejar. No Brasil os programas Bolsa Escola e Bolsa Família ajudaram a alcançá-lo. Enquanto em 1994 a população brasileira que vivia abaixo da linha da pobreza era de 23,4%, em 2004 ela diminuiu para 14,2%. Isso é muito bom, embora ainda haja muita menina descalça batendo em nosso ombro...
Nós cristãos afirmamos esse objetivo e convidamos todos a contribuírem para alcançá-lo. As igrejas têm uma herança profética e um mandato missionário que visa anunciar e vivenciar o Deus da justiça como aquele que não quer ver meninas descalças batendo no ombro de ninguém. O rev. Joel Edwards, que encabeça o Desafio do Milênio,* diz que “os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ecoam as palavras dos profetas e dos ensinamentos de Jesus”. Igrejas do mundo todo vêm fazendo desses objetivos uma das suas atividades centrais. Por que não fazê-lo também entre nós? Eis uma sugestão: assim como muitas igrejas vêm descobrindo a importância de fazer conferências com o objetivo de criar consciência missionária, poderíamos realizar também “Conferências Miquéias” que nos levem a descobrir que o Deus da justiça é também o Deus do amor. Assim, muitas igrejas passariam a investir em processos de sustentabilidade a fim de que as meninas já não tenham de andar descalças.
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